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Entre o ocidente e o oriente: diferentes formas de contar histórias

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Utagawa Kunisada – 1856

Mais uma das minhas resenhas descuidadas, baseada em um artigo de Rudy Barret sobre as diferenças estruturais entre as narrativas japonesas e as ocidentais.

Contando Histórias

A arte de contar histórias, ou storytelling para os fãs de marketing, é uma das características que une a humanidade. Em Lições para o Século XXI, Yuval Hariri afirma que são as diversas narrativas que compartilhamos que formam a argamassa que une diversos grupos humanos. Nos consideramos brasileiros porque compartilhamos a mesma narrativa sobre o Brasil, que se separou da narrativa dos Portugueses em meados do século XIX.

Essa capacidade de contar histórias encontra pontos em comum em diversas culturas, o Antropólogo Joseph Campbell fez um longo estudo sobre as mitologias e a própria forma a como o ser humano conta histórias e compilou padrões comuns, o Monomito. Essa estrutura parece ser profundamente arraigada no ser humano, tanto que vários aspectos dessa estrutura se refletem na nossa personalidade. Algo observado pelo psicólogo C. G. Jung ao propor a ideia de inconsciente coletivo.

Ginko Adachi (1874-1897)

Por um lado, alguns criticam o uso do monomito na escrita criativa por tornar todas as histórias parecidas, um dos efeitos de um padrão. Por outro, entender esses padrões é útil para roteiristas e escritores em geral. Mais que uma prisão, um bom entendimento do mito do herói é uma excelente ferramenta para bons escritores.

A tradição japonesa

A variedade humana é imensa, o que pode ser observado nas diferenças entre a construção de histórias ocidentais e as japonesas. Um dos efeitos mais interessantes da globalização é justamente perceber isso. Segundo Rudy Barret, o japão tem uma tradição particularmente diferente do resto do mundo, especialmente no quesito terror.

Segundo Rudy, em histórias ocidentais a trama é centralizada nos objetivos do protagonista, o conflito está no processo de cumprimento desses objetivos. Os os sucessos e os fracassos determinam os resultados da histórias. Ele usa Cinderela como exemplo: Ela tem um objetivo, ir ao Baile e conhecer o príncipe. A trama avança a medida que ela supera desafios para cumprir esse objetivo.

Em vez da trama girar em torno do conflito do protagonista para cumprir seus objetivos as histórias clássicas japonesas são guiadas por ações e reações que levam a uma solução. A diferença é que a trama é baseada na causalidade em vez de conflito. São os atos e reações do personagem que importam, as motivações, os objetivos dos personagens são menos relevantes e pouco elaborados. O que, segundo Barret, reflete influência do Budismo, que valoriza a eliminação dos desejos mundanos. Os protagonistas japoneses tenderiam a ser pouco motivados por desejos pessoais, mais desapegados. O ideal budista de um “bom” personagem. O protagonista japonês não seria tão centrado em si mesmo quanto nas histórias ocidentais e a trama não gira em torno do conflito pessoal do protagonista.

Assim, as histórias japonesas tendem a seguir uma estrutura de ação e reação. A história gira em torno do que acontece ao protagonista, como ele reage e quais as consequências. Nessa lógica são os antagonistas quem tem objetivos que geralmente levam ao conflito com o protagonista. Isso cria um efeito interessante, os protagonistas japoneses podem ser pessoas muito mais comuns e simples, um tanto menos “heróicas” ou distintas do normal, aumentando a chance de identificação do leitor com esses personagens.

Outra diferença significativa está na conclusão. Ao contrário do ocidente, as histórias japonesas não procuram focar na solução do conflito do protagonista. Elas terminam com o que o autor chama de “eventos ou ênfase”. Essas histórias não necessariamente tem uma solução para fechar ou explicar a trama ou resolver dúvidas. A solução muitas vezes termina enfatizando a importância das virtudes demonstradas ao longo da história. Uma comparação feita pelo autor são as fábulas de Esopo que tem um aspecto didático, buscando ensinar algo. Acredito que esse detalhe seja particularmente interessante para quem trabalhar com textos de fundo didático ou infanto-juvenil.

Um exemplo de estrutura é o chamado kishōtenketsu 起承転結 uma estrutura de 4 atos que tem a introdução, desenvolvimento, reviravolta (onde ocorre o clímax) e a resolução. No clímax a reviravolta é algum fato chocante (especialmente em histórias de terror) que muda todo o entendimento que se tinha da situação inicial e a resolução costuma a ser uma reconciliação entre com a introdução, algo que me parece um retorno ao equilíbrio. Isso demonstra bem essa diferença de um estilo não focado em conflito e superação, mas sim em descoberta e a consequente mudança de perspectiva sobre o passado. Essa estrutura podem ser observada em histórias folclóricas e filmes de terror japoneses. Imagino que seja uma boa inspiração para o silkpunk.

A mão lambida

Para clarear as coisas , segue um pequeno exemplo de kishōtenketsu sugerido por Barret:

  • Introdução (起): uma mulhes está sozinha em casa, sua única companhia é seu cachorrinho.
  • Desenvolvimento (承): Ela vê notícias sobre a fuga de um criminoso e fica assustada. Ela está com muito medo para dormir e deixa seu cachorro, que fica debaixo da cama, lamber sua mão para acalmá-la.
  • Reviravolta (転): Quando ela acorda ela descobre que seu cachorro está foi morto durante a noite.
  • Conclusão (結): Ao lado do cadáver ela encontra as palavras “Humanos também podem lamber” escritas em sangue.

Conclusão

Entender como cada povo faz suas narrativas é uma forma de entender melhor esses povos. O exemplo japonês me parece de acordo com valores menos focados no indivíduo e no conflito do que o que fazemos no ocidente. Apresentando uma visão de mundo mais fatalista e com mais ênfase na descoberta e na aceitação de que o conhecimento muda nossa visão da realidade. Não existe melhor ou pior e existem semelhanças com o padrão ocidental. Fazer a ponte entre esses diferentes estilos é uma forma de aproximar e enriquecer culturas. O que também ajuda a escrever histórias ainda melhores.


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